O vocalista do Iron Maiden dá mais detalhes de sua recém-lançada biografia
Se levarmos em consideração que é vocalista de uma das maiores bandas de heavy metal em todos os tempos, Bruce Dickinson tem uma vida discreta. Ocupada? Sem dúvida, afinal, o cara é músico, roteirista, esgrimista, piloto de avião, entre outras coisas, mas qual o grande escândalo ou a grande polêmica da vida dele? O incidente dos ovos no Ozzfest? Dizer que o Iron Maiden é maior que o Metallica? Convenhamos, não são exatamente equivalentes a matar alguém em um acidente de carro ou arrancar a cabeça de um pombo com a própria boca. Isso não quer dizer que a história da vida de tal figura (desde a infância na minúscula Worksop) não seja interessante de conhecer em detalhes. Na entrevista a seguir, “The Air Raid Siren” fala sobre algumas partes de sua autobiografia e ainda comenta mais um epíteto para sua lista: sobrevivente de câncer.
“What Does This Button Do?” (“Bruce Dickinson: Uma autobiografia – Para que serve esse botão?”, que chega ao Brasil pela Editora Intrínseca) é o título e também a última frase do livro e, quando você lê e passa por todas as histórias, parece ser seu tema ou seu mote de uma inocência quase infantil em busca de descobrir uma aventura. Como esse título reflete a sua vida?
Bruce Dickinson: Quando decidi escrever o livro foi para falar da minha vida e não apenas do Iron Maiden. Algumas coisas as pessoas já sabem, outras não. O título foi para ficar longe de clichês do sexo, drogas e rock’n’roll e todo o resto. Muita gente faz isso e não é exatamente quem eu sou. É um livro sobre celebrar a vida e exaltar as pessoas, não criticá-las. E também não se levar 100% a sério o tempo todo. Leve a vida com serenidade e bom humor, mas, acima de tudo, se cair, levante.
Quando percebi que o Iron Maiden era uma opção viável, pensei que se usasse essa voz, com aquelas guitarras e aquele baixo, poderia ser algo único” – Bruce Dickinson
Esse parece mesmo o modo como você encara as coisas, mas falemos de algumas mais específicas. Em 1994, você fala sobre um show em Sarajevo que, inclusive, tem um documentário que está prestes a sair, “Scream For Me Sarajevo”. Nada os impediu de ir para uma zona de guerra e fazer um show. Fale sobre essa apresentação e se quando você olha hoje, pensa: “Nossa foi muito perigoso, o que eu tinha na cabeça?”
Dickinson: Sim, um pouco. Mas foi um daqueles momentos que realmente transformaram minha vida. Acho que mudaram mais ainda para aqueles que viram o show. Fiquei muito emocionado por estarem fazendo esse documentário. Não tinha a menor ideia de que isso estava rolando até alguém chegar até mim no pub que eu frequento e dizer: “Oi, eu sou de Sarajevo e tenho um filme para lhe mostrar.” Não entendi nada. Eles mostraram imagens do caminhão antigo que usamos para subir a montanha e cruzar uma zona de guerra. Estava tendo uma batalha poucos minutos antes de passarmos por ali. Enfim, a questão é que entrevistaram os garotos, que hoje, 20 anos depois, não são mais garotos. E eram histórias de depravação e de como era viver em uma cidade que ficou sitiada por mais tempo que a batalha de Stalingrado (N.T.: a batalha de Stalingrado, durante a Segunda Guerra Mundial, durou de 17 de julho de 1942 a 2 de fevereiro de 1943). E isso foi em uma parte da Europa Ocidental, onde tudo é supostamente civilizado e essas coisas não acontecem. Bem, aconteceram e ainda acontecem, ainda há pessoas sendo presas por lá.
Sim, há. Olhando hoje, você vê alguma loucura em fazer aquilo ou vê com grande orgulho?
Dickinson: Acho que ambos. Sim, vendo agora com saúde e segurança, sim, foi uma coisa imbecil de se fazer, mas quer saber? Às vezes, as melhores coisas a se fazer são as imbecis, logo não me arrependo.
Você é conhecido como a “sirene de ataque aéreo”. No livro, você credita isso ao engenheiro de som Tony Platt e à música “Ridin’ With The Angels”. O que pode dizer sobre ele e o que trouxe ao seu estilo vocal que fez você mudar de “um cara que canta” para um vocalista?
Dickinson: Bem, na verdade Tony foi um dos passos, e não todo o processo, mas abriu a minha voz de uma forma que nunca teria arriscado estender, da forma que ele fez. Assim, descobri notas no meu alcance que eu jamais teria chegado nem próximo, porque achava que poderia danificar minhas cordas vocais. E, no fim das contas, uns dois meses após a gravação do álbum (N.T.: “Shock Tactics” do Samson, 1981) eu ainda não sabia como reproduziria as músicas ao vivo. Tocando em clubes, com sistema de som que não era tão bom, achava que ia perder minha voz. Entrei em desespero, até que percebi que já tinha certa técnica vocal que havia aprendido em livros e treinado por conta. Aí achei que era hora de me acalmar, não entrar em pânico, trazer esse aprendizado à tona e tentar fazer aquele barulho que saía da minha boca da forma que as pessoas gostassem. Foi o que fiz e isso me levou a aceitar o fato de que podia chegar a lugares com essa voz, que não achei que poderia antes, em termos de timbres, notas, melodias diferentes e tantas outras coisas. Aí, quando percebi que o Iron Maiden era uma opção viável, pensei que se usasse essa voz, com aquelas guitarras e aquele baixo, poderia ser algo único.
A primeira vez que vi o Maiden foi um show em que íamos [Samson] tocar depois. Em teoria, éramos a banda principal, só que o público ali tinha ido assisti-los” – Bruce Dickinson
E acabou sendo mesmo. Conte sobre quando viu o Iron Maiden ao vivo tocando “Prowler” e sabia que seria o vocalista deles. De onde vinha essa confiança e como sabia disso? De onde veio essa epifania de saber que aquela era a banda para você?
Dickinson: Bem, há momentos em que essas coisas acontecem. Como quando ouvi o Deep Purple tocando atrás de uma porta e achei aquele barulho sensacional. E a primeira vez que vi o Maiden foi um show em que íamos [Samson] tocar depois. Em teoria, éramos a banda principal, só que o público ali tinha ido assisti-los. Eu estava no público, assistindo bem lá de trás e o poder da banda me lembrou aquele momento do Purple. Mas não era igual, era como uma versão atualizada para a parte final do século 20. E eu pensei: “Se eu cantasse nessa banda… wow! Seria inacreditável o que poderíamos ser juntos.” Bem no fundo da minha mente, eu sabia que ia acontecer. Conseguia sentir no meu corpo. O baterista (N.T.: Clive Burr) já era meu amigo e eu tinha alguma proximidade com a banda de qualquer forma, porque gravamos “Shock Tactics” em um estúdio ao lado de onde o Maiden gravou “Killers”. Então, não foi como se eles não me conhecessem ou não soubessem o tipo de vocal que eu usava. Para ser sincero, dava para ver que havia stress com Paul [Di’Anno, vocalista original] naquele momento e vi que aquilo não ia durar. É como você vê uma garota às vezes e diz: “Vou casar com você.” Não é racional, não faz o menor sentido, mas há uma ligação. E foi esse tipo de conexão.
Diferentemente de outras biografias, o seu livro não é a história de um fanfarrão, bem como não é um acerto de contas. É verdadeiro e há certo humor irônico nele. Fale sobre a visão artística ao fazer esse livro. Como foi o processo?
Dickinson: Em primeiro lugar, eu queria que o livro fosse inspirador, sobre como a música e a minha vida são coisas boas e não há motivo para atacar pessoas. Para início de conversa, porque lhes confere uma força e importância ridículas, que elas não têm de outra forma. Alguns vieram até mim dizer que esperavam estar no meu livro e não tive coragem de dizer-lhes que não eram importantes o bastante. O que importa na sua vida são as coisas que acontecem da primeira vez, e as coisas que lhe inspiram. Não estou interessado em baixar o nível. Já há reality shows suficientes para isso. Esses são como um estranho câncer povoando as programações. Acho que isso vai comendo a alma das pessoas. O livro que queria escrever seguia o princípio de que minha vida tem sido maravilhosa. Eu a amo e o que mais amo sobre ela é que nunca perdi aquele otimismo infantil de que se pode aprender alguma coisa todo dia, há algo para extrair alegria. É por isso que foi escrito dessa forma. Às vezes, levo tudo muito a sério, mas, mesmo assim, consigo rir disso. No Iron Maiden temos isso em comum. Acham que somos todos músicos de heavy metal incrivelmente sérios, e, sim, somos sérios sobre o que fazemos, mas não sobre o que somos. Algo que não aguento, acho a coisa mais chata do mundo, são rockstars que se levam muito a sério. É um privilégio ter esse trabalho. Poderia ser muito pior, você poderia ter câncer… Opa, desculpe! (risos). Há bastante sobre o câncer no livro.
Sim, quero falar sobre isso, mas ainda sobre o livro, tenho que dizer que quando alguém me manda um desses, já acho que vou ler a mesma coisa de novo: sou bom, fiquei com tantas mulheres, etc. No seu caso, a cada capítulo o leitor fica intrigado, querendo ler cada vez mais. Parabéns!
Dickinson: Obrigado. Tenho uma confissão a fazer: eu não leio autobiografias exatamente por essa razão que você odeia lê-las. Fiz uma pesquisa sobre o assunto. Me recusei a escrever isso por 10, 15 anos porque achei que iam querer aquela coisa entediante e rasa. Isso é besta, narcisista e chato. E esse é o pior crime que você pode cometer: fazer algo chato! Fui a uma livraria e peguei algumas autobiografias aleatoriamente na prateleira. Essas pessoas são muito chatas. É exatamente como você descreve. Elas conseguem transformar um formigueiro em uma montanha. Extraem todo esse drama a partir de nada. Coisas como: me senti mal porque minha maquiagem estava borrada ou levaram minha Lamborghini. Que tipo de besteiras são essas? Aí, lembrei de um livro que li na infância e me inspirou muito, de um ator inglês que está morto há um bom tempo chamado David Niven. Ele tinha um senso de humor bem irônico e contava histórias sobre sair e ficar bêbado com Errol Flynn (N.T.: ator australiano naturalizado americano, morto em 1959 aos 50 anos, famoso por fazer filmes com lutas de espada). Mas não era sobre se embebedar, era sobre a alegria e a loucura de tudo aquilo. E ele conta de modo muito bonito, com estilo. E pensei que ia adorar escrever um livro que chegasse perto de ser a metade daquele. Se chamava “The Moon’s a Balloon” e tinha ele lá no fundo da minha mente quando comecei a escrever esse.
Tenho o maior respeito possível por Blaze [Bayley] porque ele encarou uma situação de extrema dificuldade. Com uma voz tão claramente diferente da minha.” – Bruce Dickinson
Acho que obteve total sucesso, porque é simplesmente uma ótima leitura, mesmo para quem não é fã do Iron Maiden.
Dickinson: Essa foi uma das intenções. Eu queria tentar atrair pessoas que são apenas fãs ocasionais ou até que tem um conhecimento vago de que existe uma banda chamada Iron Maiden. Quando eu era garoto, nos anos 70, só dava para ler histórias da vida de estrelas de cinema de Hollywood, mas todo mundo me falava para lê-los porque eram simplesmente bons. E tinham razão. Se eu cheguei sequer perto, estou realizado.
Você fala sobre pessoas importantes em sua vida. Rod Smallwood (empresário do Iron Maiden) e Steve Harris (baixo) são parte dela por 4 ou 5 décadas agora. O que Smallwood tem que o levou a perceber que era o cara que seria o comandante ou ajudaria a comandar o barco?
Dickinson: Sim, há muitos elementos nessa história. O primeiro é que o Iron Maiden não é como várias outras bandas. E o Maiden é único não por causa dos músicos e dos compositores, não é isso. A banda significa tanto para tanta gente, por tantos anos, que é difícil descrever para alguém que não viveu como sua vida muda quando se é tocado por isso de alguma forma. E uma das pessoas que simboliza isso é Rod, porque ele é o coração e alma da integridade da música que fazemos. E acho que sem ele o Iron Maiden ficaria muito tentado em seguir o caminho de ser uma banda como outra qualquer. Ele faz questão de colocar a integridade no caminho que for seguir e transporta isso para música. Agora, não é o que eu chamaria de um empresário/músico. Tem uma participação válida e dá sua opinião, com a qual frequentemente discordamos, mas a questão é que ela está lá pelas razões corretas, mesmo que, às vezes, a executemos de forma diferente. E é sempre sobre integridade, sempre sobre a verdade no que fazemos e sermos verdadeiros à nossa visão. Somos uma banda criada pelo nosso público, por assim dizer, e eles nos dão permissão para existir. Porém, não pedimos permissão a eles para criar. Fazemos isso por nossa conta, com a esperança de que nos sigam na trajetória, para o bem ou para o mal. Ele é essencial em fazer isso para nós.
Quando você voltou ao Iron Maiden, escolheu cantar algumas músicas da era Blaze Bayley: “Man On the Edge”, “Futureal”, “Sign of the Cross” e “The Clansman”. Sempre achei que isso foi gentil de sua parte, porque deu crédito ao que foi feito quando não estava lá, diferentemente de alguns vocalistas, que se recusam a cantar certas músicas. Por que não voltar e cantar só aquelas da sua época? Por que fazer isso?
Dickinson: (risos). A vida é curta para você ficar exibindo seu ego por aí dessa forma. É infantil, bobo. Algumas músicas funcionaram, outras não, mas sabe de uma coisa? Todas foram compradas pelos fãs da banda e “Sign of the Cross” e “The Clansman” achei que ficaram boas. O material é bom. A voz de Blaze é bem diferente da minha, um tom totalmente distinto. Eu não reclamei porque pude usar um tom mais baixo, mais barítono para cantá-las. Gostei da experiência. E tenho o maior respeito possível por Blaze porque ele encarou uma situação de extrema dificuldade. Com uma voz tão claramente diferente da minha, ter que tentar cantar algumas daquelas músicas… Ficou em uma situação difícil. É um cara muito, muito, legal até hoje.
Algumas vogais no tom mais baixo estão soando um pouco instáveis, mas isso está melhorando (…) O mais bizarro é que as notas mais altas estão mais cheias e com menos esforço” – Bruce Dickinson
Com certeza. Em 2015, você concedeu uma entrevista ao [jornal britânico] The Guardian, na qual disse que o “inferno congelaria antes de eu não poder subir ao palco. Nem que outra pessoa cante e eu só fique balançando as merdas dos meus braços.” Isso resume bem como você encarou toda a situação do câncer. Não se sentiu derrotado e desistiu, mas soube encarar e superar. Fale sobre o câncer e o doutor Amen Sibtain, a quem você chama de mágico. Você encarou isso com expectativa de sucesso ou houve momentos de medo de verdade e que achou que não ia conseguir?
Dickinson: Essa última parte, de achar que não vai conseguir não é uma opção, porque você está conseguindo. Assim que se vê cheio de quimioterapia e radiação por 33 dias, cinco dias por semana, simplesmente não tem a opção de desistir. Há muitas coisas desagradáveis sobre as quais eu escrevo no livro, mas, para falar a verdade, esse medo aconteceu comigo no início. Porém, logo percebi que não ia morrer cedo. O que lhe deixa amedrontado é a incerteza sobre qual será o resultado final disso. Contudo, as chances maiores são que pode ser que acabe tudo bem. E é claro que fiz muita pesquisa, usei muito o Google e vi que na verdade minhas probabilidades eram 60-40 de eu me livrar, porque não sabíamos qual era a causa do tumor. Mas, se fosse um HPV (N.T.: vírus do papiloma humano) minhas chances ficavam entre 60 e 80%. O grande problema que teria, e descobri lendo e falando com outras pessoas, seria a recuperação do tratamento em si, depois de me livrar do câncer. Assim, na véspera de Natal, enquanto fazia umas compras, recebi uma ligação do meu médico com boas notícias sobre a má notícia: como em 90% desses casos em homens e mulheres, era um câncer com relação com HPV e isso me colocava em uma porcentagem de sobrevivência muito maior. Aí comecei a me sentir mais otimista. Mesmo assim, é algo desconhecido e passar por tudo isso acaba com seu corpo. Tive muita sorte de estar saudável e com alguma gordura antes de começar o tratamento porque nunca fumei e estava muito determinado. Isso ajudou muito. Mas, durante o tratamento, encontrei muitos homens, muitos mesmo, com o mesmo problema. Aliás, eu li no blog do Ministro de Meio-Ambiente do Canadá, que ele havia tido o mesmo tipo de tumor e já tinha mais de 70 anos. Dizia que encarou e depois da radioterapia ia para casa como milhares de outras pessoas. Foi das melhores coisas que li sobre isso. Vamos seguir em frente. Eu tratei como se fosse um trabalho, como trato qualquer coisa que faço, como fazer um álbum: vai lá, faz até o fim e aí vê o que acontece. Não havia mais o que fazer além disso.
Não há efeitos colaterais? Você conseguiu fazer os shows sem comprimidos ou injeções de cortisona?
Dickinson: Pelo amor de Deus! Você falou cortisona! Jamais, nunca vou tomar isso! Se precisa de cortisona para fazer o show, não deveria fazê-lo. Tomar isso para voz é a mesma coisa que sentar num banco e ir cortando-o com uma serra. Vai cortando e acha que está tudo bem até que um dia quebra e você cai. Não, é um desastre. A melhor coisa que posso dizer é: ouça o álbum ao vivo.
Eu ia perguntar sobre isso.
Dickinson: Sim, acho que a maioria dos shows foi gravada no início da tour. Me disseram que iríamos gravar e quando percebi já estava pronto! Aí fui ouvir e até que ficou legal (risos). Fiquei muito orgulhoso dele, acho que a voz está ótima. Tudo bem, eu produzo menos saliva do que antes, então tenho pequenas garrafas de água escondidas pelo palco. E algumas vogais no tom mais baixo estão soando um pouco instáveis, mas isso está melhorando com o tempo e ninguém notou. O mais bizarro é que as notas mais altas estão mais cheias e com menos esforço, o que é extraordinário e não sei dizer o motivo.
Transcrito e traduzido por Carlo Antico.