H.P. Lovecraft, pai do terror na literatura moderna, mantinha uma relação íntima com sua cidade natal

H.P. Lovecraft

Providence, capital do estado americano de Rhode Island, é uma cidade linda de apenas 180 mil habitantes e que vale muito a pena uma visita de uns cinco dias. A arquitetura e as praças são belíssimas, os inúmeros restaurantes (especialmente de comida italiana) são deliciosos, há boas opções de compras, o centro tem várias livrarias de usados e novos e uma boa loja de discos chamada Armageddon Shop. Além disso, se visitar entre abril e setembro, ainda pode pegar o belíssimo espetáculo WaterFire realizado no Rio Providence dois sábados por mês.

Mas, para quem é fã de literatura e de heavy metal, Providence tem uma característica muito especial: é a cidade natal de H. P. Lovecraft, considerado o pai do terror moderno na literatura e influência para gente do quilate de Stephen King, Peter Straub (co-autor de “O Talismã” com Stephen King), Neil Gaiman (as HQs de “Sandman”), além de muitas bandas.

Representação de Cthulhu pelo artista sueco Dennis Carlsson, da DC Tattoo - disse86.deviantart.com
Representação de Cthulhu pelo artista sueco Dennis Carlsson, da DC Tattoo - disse86.deviantart.com

There is not dead / Which can eternal Lie / Yet With Strange Aeons / Even Death My Die”

Eu nem vou traduzir os versos acima. Os fãs do Iron Maiden já sabem muito bem onde eles se encontram e até mesmo os do Metallica (o verso aparece de forma um pouquinho modificada na abertura da última estrofe de “The Thing The Should Not Be”, de “Master Of Puppets”). Existem ainda outras referências em várias bandas, como “Behind the Wall of Sleep”, do primeiro álbum do Black Sabbath (a letra é baseada no conto “Beyond the Wall of Sleep”, ou seja há uma pequena mudança no título) e, claro, a mais óbvia de todas, “The Call of Ktulu”, faixa que fecha “Ride The Lightning”, do Metallica (interessante notar que a grafia original do título do conto é Cthulhu).

Falando em Cthulhu, o mito homônimo foi a maior das contribuições do nativo de Providence para a literatura mundial, em uma carreira que só começou a ganhar notoriedade poucos anos antes de seu falecimento, aos 47 anos, em 1937.

Howard Phillips Lovecraft nasceu em Providence no dia 20 de agosto de 1890. Filho único, tinha apenas três anos quando seu pai teve um surto psicótico e foi internado no Hospital Butler de Providence, onde morreu em 1898.

H.P. Lovecraft | Foto: reprodução
H.P. Lovecraft | Foto: reprodução

Lovecraft foi criado pela mãe, duas tias e seu avô paterno. Já quando criança era um prodígio, chegando a escrever poemas completos aos seis anos; mas vivia doente, fato que o impediu de frequentar a escola até completar oito anos de idade. Porém, era um leitor voraz e seu local predileto era a biblioteca do avô no sótão da casa. Logo, o garoto apresentou um interesse em astronomia, química e nas histórias góticas que seu avô contava a ele, além de ter adorado “As Mil e Uma Noites” e os contos daquele que viria a ser sua maior influência, Edgar Allan Poe.

Sua criação o transformou em uma pessoa que gostava de viver isoladamente e para lidar com isso, logo começou a escrever suas próprias histórias. A primeira que foi publicada se chamava “O Alquimista” e saiu em uma revista de contos fantásticos em 1922.

Em um encontro de escritores em Boston, Lovecraft conheceu sua futura esposa, Sonia Greene. Depois de casados, acabaram indo morar em Nova York, onde apesar de contribuir para a revista “Weird Tales”, o escritor não conseguia se sentir à vontade, sentindo muita falta de sua cidade natal. É dessa época a frase que dá título a esse artigo. Para piorar, devido a dificuldades financeiras Sonia mudou-se para Ohio e H.P. teve que se mudar para uma área barra pesada da cidade, chamada Red Hook. Depois que seu apartamento foi invadido e roubado, Lovecraft criou toda a mitologia de Chtulhu, cujo tema principal é a insignificância da humanidade perante seres que estariam debaixo da terra apenas esperando para emergirem e tomarem o planeta para eles.

A evocação desses seres seria possível através da leitura de Necronomicon – O Livro Proibido dos Mortos, escrito pelo louco árabe Abdul Alhazred (uma clara influência de “As Mil e Uma Noites). Tudo isso também invenção da mente criativa de Lovecraft, que muitos autores usaram depois (alguns chegaram a escrever o Necronomicon). A inscrição na lápide de Eddie na capa do álbum “Live After Death” do Iron Maiden estaria no Necronomicon que, por sinal, também dá nome a uma banda alemã de thrash metal.

H.P. Lovecraft e Cthulhu, em representação do artista Sean Phillips - www.seanphillips.co.uk
H.P. Lovecraft e Cthulhu, em representação do artista Sean Phillips - www.seanphillips.co.uk

Segundo Stephen King, Lovecraft foi “o maior escritor da clássica história de terror no século vinte”. Se o próprio Rei falou, quem somos nós para discordar, não é mesmo?

H.P. Lovecraft voltou a Providence e morreu de câncer de intestino quando seus contos começavam a ganhar mais notoriedade. Foi graças a dois amigos, August Derleth e Donald Wandrei, com quem trocava correspondências e enviava seus contos, que sua obra não ficou perdida para sempre. Os dois fundaram a editora Arkham House (em uma referência a uma cidade fictícia de Massachusetts em seus contos) – que existe até hoje e é especializada no que se chama “weird fiction”- para manter o legado do escritor e o resto é história.

História que você pode viver se tiver a curiosidade de conhecer a bela Providence. Assim como algumas bandas, alguns escritores possuem um séquito muito fiel de fãs e Lovecraft é um desses casos. Por isso, em 2013 foi criada a NecronomiCon Providence, uma ONG com o objetivo de manter vivo o legado do escritor e ainda proporcionar que seus fãs vejam de perto os locais em que ele viveu.

Exterior da Providence Athenaeum | Foto: reprodução
Exterior da Providence Athenaeum | Foto: reprodução
Interior da Providence Athenaeum | Foto: reprodução
Interior da Providence Athenaeum | Foto: reprodução

Um bom lugar para se começar é o maravilhoso Providence Athenaeum. Uma biblioteca de quase duzentos anos situada no bairro de College Hill, bem próximo ao centro da cidade, foi considerada pela NPR (National Public Radio) “um modelo nacional de engajamento cívico”. Edgar Allan Poe costumava frequentar o local quando visitava Providence e Lovecraft também gostava de utilizá-lo para escrever. Foi lá que em Agosto de 2013 instalou-se o busto de bronze de H.P. Lovecraft.

Saindo de Athenaeum pela frente e indo para sua direita, você chega a Angell Street, onde está localizada a casa onde o autor nasceu e na esquina com a Prospect Street, a placa indicando a Lovecraft Square. Uma curiosidade: nessa mesma esquina há uma casa. Os mais desavisados (como foi o meu caso, por exemplo) podem achar que pela proximidade da casa com a placa há alguma coisa de Lovecraft ali, mas é uma residência! Como as casas nos EUA estão 90% das vezes com os portões abertos, fui entrando, achando que veria algo do escritor lá. Entrei, desci as escadas e quando voltei para o jardim, um senhor muito educado se aproximou:

– Posso ajudar?
– Achei que tinha alguma coisa de Lovecraft aqui por causa da placa.
– Não, aqui é a minha casa, é propriedade particular.
– Ok, me desculpe.

Subindo a Prospect Street, encontramos a última casa em que o autor morou, que também é o cenário para a casa de Robert Blake, no conto “O Assombro das Trevas”.

Ainda caminhando por College Hill, você encontrará as moradias que serviram de inspiração para duas casas no conto “A Casa Temida”: tanto a que dá título ao conto, como a do Dr. Elihu Whipple. E, claro, o Providence Art Club e o Fleur de Lys Studio, ambos presentes em “O Chamado de Cthulhu”. O primeiro como uma galeria mesmo e o segundo como a casa do artista Henry Anthony Wilcox.

Outro ponto interessante é a Brown University. Além de valer à pena por ser um campus maravilhoso de uma das universidades mais importantes dos EUA, também foi usada como modelo para a fictícia Miskatonic University, presente em vários contos “Lovecraftianos”.

Lovecraft Arts and Sciences e NecronomiCon Providence | Foto: arquivo pessoal
Lovecraft Arts and Sciences e NecronomiCon Providence | Foto: arquivo pessoal

Essas são algumas das atrações em College Hill. Há muitas outras, mas falar sobre todas elas ia deixar o artigo muito grande e monótono. Saindo de College Hill e andando no centro da cidade pela Weybosset St, encontra-se uma pequena galeria chamada Providence Arcade. Lá dentro, está localizada a Lovecraft Arts and Sciences, uma loja especializada no autor nativo e em “weird fiction” em geral. Livros, merchandising e audiobooks são a especialidade da loja, que está sempre com um bom heavy metal rolando de fundo. No dia em que eu fui, estava rolando “Accident of Birth” do Bruce Dickinson.

Em 2013, a NecronomiCon Providence começou a organizar uma convenção bienal que leva o nome da fundação voltada para a obra de Lovecraft e outros autores de “weird fiction”. São realizadas palestras, debates, leituras e workshops. A próxima edição será agora de 17 a 20 de agosto (a data sempre coincide com o aniversário de Lovecraft). Mais informações: www.necronomicon-providence.com.

O documentário “Lovecraft: Fear of the Unknown” saiu em 2008 e foi relançado em DVD e Blue-Ray com extras em 2015. Não há versão nacional, mas ele está disponível em sua totalidade (menos os extras) e é bem fácil de achar no youtube. Foi premiado como melhor documentário na ComicCon de 2008 e traz depoimentos de gente como os diretores John Carpenter (“Vampiros de John Carpenter”, “Fuga de Nova York”, “Christine, o carro assassino”), Guillermo Del Toro (“O Labirinto do Fauno”) e escritores como Peter Straub e Neil Gaiman.

Lovecraft: Fear of the Unknown | Imagem: divulgação
Lovecraft: Fear of the Unknown | Imagem: divulgação
Os seis livros com os contos de Lovecraft, da editora Iluminuras | Foto: arquivo pessoal
Os seis livros com os contos de Lovecraft, da editora Iluminuras | Foto: arquivo pessoal

Entre os anos de 1998 e 2003, a editora Iluminuras lançou seis livros com os contos de Lovecraft no Brasil. Não estão todas as histórias presentes, mas a abrangência é bem interessante e vale muito a pena conferir. Ao que parece, as edições se esgotaram, mas estão sendo relançadas desde 2015. Pessoalmente, posso dizer que eles fizeram parte de toda minha vida universitária quando lançados originalmente.

Portanto, se tiver a oportunidade, não deixe de passar dias bem agradáveis na linda Providence e ouvir o chamado de Cthulhu para conhecer Lovecraft mais de perto.

Busto de H.P. Lovecraft | Foto: arquivo pessoal
Busto de H.P. Lovecraft | Foto: arquivo pessoal
Lovecraft Memorial Square | Foto: arquivo pessoal
Lovecraft Memorial Square | Foto: arquivo pessoal
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